Autor: Fernando Pessoa


Citações

Considero a vida uma estalagem
Fragmento 1

Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.

Tudo se penetra
Fragmento 228

Tudo se penetra. A leitura dos clássicos, que não falam de poentes, tem-me tornado inteligíveis vários poentes, em todas as suas cores. Há uma relação entre a competência sintática, pela qual se distingue a valia do senão, do mas, e do porém, e a capacidade de compreender quando o azul do céu é realmente verde, e que parte do amarelo existe no verde azul do céu. No fundo é a mesma coisa, a capacidade de definir e sutilizar. Sem sintaxe não há emoção duradoura. A imortalidade é uma função dos gramáticos.

O espetáculo do mundo
Fragmento 132

Quanto mais contemplo o espetáculo do mundo, e o fluxo e refluxo da mutação das coisas, mais profundamente me compenetro da ficção ingênita de tudo, do prestígio falso da pompa de todas as realidades. E nesta contemplação, que a todas que refletem, uma ou outra vez terá sucedido, a marcha multicolor dos costumes e das modas, o caminho complexo dos progressos e das civilizações, a confusão grandiosa dos impérios e das culturas - tudo isso me parece como um mito e uma ficção - sonhadas entre sombras e esquecimentos. Mas não sei se a definição suprema de todos essses propósitos mortos, até quando conseguidos, deve estar na abdicação extática do Buda, que, ao compreender a vacuidade das coisas, se ergueu do seu êxtase dizendo “já sei tudo”, ou na indiferença demasiada experiente do imperador Severo: “Omnia fui, nihil expedit” - fui tudo, nada vale a pena.

Forças instintivas Fragmento 133

Transeuntes eternos por nós mesmos
Fragmento 138

Os sentidos possíveis
Fragmento 148

O homem perfeito do pagão era a perfeição do homem que há; o homem perfeito do cristão a perfeição do homem que não há; o homem perfeito do budista a perfeição de não haver o homem. A natureza é a diferença entre a alma e Deus. Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto, mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos.

O homem é um animal
Fragmento 149

Pajem num rito incompreendido
Fragmento 166

Tudo é nós, e nós somos tudo
Fragmento 167

Descrença na fé cristã Fragmento 306

Fragmentos:

10 e 11, 13 55, 58 e 59 (reler), 62, 66, 67, 68, 70, 76, 77, 79 (livro de jó), 84 (gramática), 114, 115 (individualidade), 117 (espiral - saber dizer), 133, 144, 145, 150, 157, 166—, 167, 171, 175, 197, 235, 254, 256, 257, 260, 266, 273, 278, 288, 297,298, 306, 317, 357, 361, 405<, 406


Novas Palavras

  • Troçar: Zombar
    • Exemplo - Fragmento 150 “Para que troço eu deles?”
  • Insciência: ignorância ou inaptidão
    • Exemplo - Fragmento 150 “Irmãos na comum insciência”
  • Plácido: tranquilo
    • Exemplo - Fragmento 151 “No fundo da rua, abismo plácido…”
  • Madrepérola: Madrepérola, também conhecida como nácar, é uma substância dura e iridescente, rica em calcário, produzida por alguns moluscos na parte interna de suas conchas
    • Exemplo - Fragmento 151 “É um ar de neve tornada cor onde boiam filamentos de madrepérola morna.""
  • Alameda: rua (ou caminho) constituída por árvores plantadas em fileiras.
  • Pajem: um rapaz que acompanha e serve um nobre, um príncipe ou um rei, especialmente em contextos históricos ou em cerimônias como casamentos, onde desempenha o papel de levar as alianças ou outros elementos simbólico
  • Cataclismos: eventos catastróficos de grande escala, tanto naturais quanto sociais
  • Apoteose: ato de elevar alguém à condição de deus, ou seja, deificar ou divinizar
    • Exemplo - Fragmento 159 “Se eu um dia pudesse adquirir um rasgo tão grande de expressão, que concentrasse toda a arte em mim, escreveria uma apoteose do sono.”
  • Sutilizar: tornar-se volátil e evaporar-se; volatilizar-se, evolar-se.
  • oprobio 401

Sim, passaremos todos, passaremos tudo. Nada ficará do que usou sentimentos e luvas, do que falou da morte e da política local. Como é a mesma luz que ilumina as faces dos santos e as polainas dos transeuntes, assim será a mesma falta de luz que deixará no escuro o nada que ficar de uns terem sido santos e outros usadores de polainas. No vasto redemoinho, como o das folhas secas, em que jaz indolente- mente o mundo inteiro, tanto faz os reinos como os vestidos das costureiras, e as tranças das crianças louras vão no mes- mo giro mortal que os cetros que figuraram impérios. Tudo é nada, e no átrio do Invisível, cuja porta aberta mostra ape- nas, defronte, uma porta fechada, bailam, servas desse vento que as remexe sem mãos, todas as coisas, pequenas e gran- des, que formaram, para nós e em nós, o sistema sentido do universo. Tudo é sombra e pó mexido, nem há voz senão a do som que faz o que vento ergue e arrasta, nem silêncio senão do que o vento deixa. Uns, folhas leves, menos presas de terra por mais leves, vão altas do redopio do Àtrio e caem mais longe que o círculo dos pesados. Outros, invisíveis quase, pó igual, diferente só se o víssemos de perto, faz cama a si mesmo no redemoinho. Outros ainda, miniaturas de troncos, são arrastados à roda e cessam aqui e ali. Um dia, no fim do conhecimento das coisas, abrir-se-á a porta do fundo, e tudo o que fomos — lixo de estrelas e de almas — será varrido para fora da casa, para que o que há recomece

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