Autor: Viktor Frankl
Então nos dávamos conta da verdade daquela frase de Dostoievski, que define o ser humano como o ser que a tudo se habitua.
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Mas agora meu espírito está tomado daquela figura à qual ele se agarra com uma fantasia incrivelmente viva, que eu jamais conhecera antes na vida normal. Converso com minha esposa. Ouço-a responder, vejo-a sorrindo, vejo seu olhar como que a exigir e a animar ao mesmo tempo e - tanto faz se é real ou não a sua presença - seu olhar agora brilha com mais intensidade que o sol que está nascendo. Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a verdade daquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da sabedoria, por tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma, o bem último e supremo que pode ser alcançado pela existência humana. Compreendo agora as coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia - em fé humana: a redenção pelo amor e no amor! Passo a compreender que a pessoa, mesmo que nada mais lhe reste neste mundo, pode tornar-se bem-aventurada - ainda que somente por alguns momentos - entregando-se interiormente à imagem da pessoa amada. Na pior situação exterior que se possa imaginar, numa situação em que a pessoa não pode realizar-se através de alguma conquista, numa situação em que sua conquista pode consistir unicamente num sofrimento reto, num sofrimento de cabeça erguida, nesta situação a pessoa pode realizar-se na contemplação amorosa da imagem espiritual que ela porta dentro de si da pessoa amada. Pela primeira vez na vida entendo o que quer dizer: Os anjos são bem-aventurados na perpétua contemplação, em amor, de uma glória infinita. .
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A vontade de humor - a tentativa de enxergar as coisas numa perspectiva engraçada - constitui um truque útil para a arte de viver. A possibilidade de optar por viver a vida como uma arte, mesmo em pleno campo de concentração, é dada pelo fato de a vida ali ser muito rica em contrastes. E efeitos contrastantes, por sua vez, pressupõem certa relatividade de todo sofrimento.
Terminada a sessão de cinema, íamos tomar um café, comer um sanduíche e acabávamos com essas estranhas idéias metafísicas que por um momento haviam cruzado nosso pensamento
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A depreciação total da realidade oriunda da forma provisória de existência do recluso acaba seduzindo a pessoa a entregar os pontos completamente, a abandonar-se a si mesma, visto que de qualquer forma “tudo está perdido”. Essas pessoas estão se esquecendo de que muitas vezes é justamente uma situação exterior extremamente difícil que dá à pessoa a oportunidade de crescer interiormente para além de si mesma. Em vez de transformar as dificuldades externas da vida no campo de concentração numa prova de sua força interna, elas não levam a sério a existência atual, e depreciam-na para algo sem real valor. Preferem fechar-se a esta realidade ocupando-se ainda apenas com a vida passada.
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Para os outros, entretanto, para nós, do tipo médio e morno, passava a valer a advertência de Bismarck: “A vida é como estar no dentista: a gente pensa que o principal ainda vem, quando na realidade já passou.” Variando um pouco, poderíamos dizer que a maioria das pessoas no campo de concentração acreditava terem perdido as verdadeiras possibilidades de realização, quando na realidade elas consistiam justamente naquilo que a pessoa fazia dessa vida no campo: vegetar como os milhares de prisioneiros ou, como uns poucos, vencer interiormente
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Não deixa de ser uma peculiaridade do ser humano que ele somente pode existir propriamente com uma perspectiva futura, de certa forma sub specie aeternitatis 1 - perspectiva da eternidade
Diz Espinoza em sua “Ética”: ” þIffectur qui parsio esta, desinit esse parsio simulatque eius claram et distinctam formamus ideam. ” (A emoção que é sofrimento deixa de ser sofrimento no momento em que dela formarmos uma idéia clara e nítida. - Ética, quinta parte, “Do poder do espírito ou a liberdade humana”, sentença III.)
Aquela unicidade e exclusividade que caracteriza cada pessoa humana e dá sentido à existência do indivíduo, faz-se valer tanto em relação a uma obra ou uma conquista criativa, como também em relação a outra pessoa e ao amor da mesma. Esse fato de cada indivíduo não poder ser substituído nem representado é, no entanto, aquilo que, levado ao nível da consciência, ilumina em toda a sua grandeza a responsabilidade do ser humano por sua vida e pela continuidade da vida. A pessoa que se deu conta dessa responsabilidade em relação à obra que por ela espera ou perante o ente que a ama e espera, essa pessoa jamais conseguirá jogar fora a sua vida. Ela sabe também conseguirá suportar quase todo “como”.
Quero explicar por que tomei o termo “logoterapia” para designar minha teoria. O termo “logos” é uma palavra grega, e significa “sentido”! A logoterapia, ou, como tem sido chamada por alguns autores, a “Terceira Escola Vienense de Psicoterapia”, concentra-se no sentido da existência humana, bem como na busca da pessoa por este sentido.
Sentido da vida: Duvido que um médico possa responder esta questão em termos genéricos. Isto porque o sentido da vida difere de pessoa para pessoa, de um dia para outro, de uma hora para outra. O que importa, por conseguinte, não é o sentido da vida de um modo geral, mas antes o sentido específico da vida de uma pessoa em um dado momento. Formular esta questão em termos gerais seria comparável a perguntar a um campeão de xadrez: “Diga-me, mestre, qual o melhor lance do mundo?” Simplesmente não existe algo como o melhor lance ou um bom lance à parte de uma situação específica num jogo e da personalidade peculiar do adversário. O mesmo é válido para a existência humana.
Ao declarar que o ser humano é uma criatura responsável e precisa realizar o sentido potencial de sua vida, quero salientar que o verdadeiro sentido da vida deve ser descoberto no mundo, e não dentro da pessoa humana ou de sua psique, como se fosse um sistema fechado. Chamei esta característica constitutiva de “a auto-transcendência da existência humana”. Ela denota o fato de que ser humano sempre aponta e se dirige para algo ou alguém diferente de si mesmo - seja um sentido a realizar ou outro ser humano a encontrar. Quanto mais a pessoa esquecer de si mesma - dedicando-se a servir uma causa ou a amar outra pessoa - mais humana será e mais se realizará. O que se chama de auto-realização não é de modo algum um atingi-lo.
Em outras palavras, auto-realização só é possível como um efeito colateral da auto-transcendência. Até aqui mostramos que o sentido da vida sempre se modifica, mas jamais deixa de existir. De acordo com a logoterapia, podemos descobrir este sentido na vida de três diferentes formas:
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criando um trabalho ou praticando um ato;
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experimentando algo ou encontrando alguém;
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pela atitude que tomamos em relação ao sofrimento inevitável.
Por conseguinte, não farei aqui elaborações sobre o sentido da vida da pessoa em seu conjunto, embora não negue a existência de tal sentido a longo prazo. Para usar uma analogia, pense num filme que consista em milhares e milhares de seqüência seja mostrada. Não obstante, não podemos entender todo o filme sem ter compreendido antes cada um dos seus componentes, cada uma das imagens individuais. Não será o mesmo com a vida?
E como pode um ser humano encontrar sentido? Como Charlotte Bühler escreveu: “Tudo que podemos fazer é estudar a vida das pessoas que parecem haver encontrado suas respostas às questões em torno das quais gira em última.
Como ensina a logoterapia, há três caminhos principais através dos quais se pode chegar ao sentido na vida. O primeiro consiste em criar um trabalho ou fazer uma ação. O segundo está em experimentar algo ou encontrar alguém; em outras palavras, o sentido pode ser encontrado não só no trabalho, mas também no amor. Edith Weisskopf Joelson observou neste contexto que “a noção logoterápica de que a experiência pode ter tanto valor quanto a realização prática é terapêutica porque compensa a nossa ênfase unilateral no mundo caminho para o sentido na vida: mesmo uma vítima sem recursos, numa situação sem esperança, enfrentando um destino que não pode mudar, pode erguer-se acima de si mesma, crescer para além de si mesma e, assim, mudar-se a si mesma.
Sigmund Freud afirmou em certa ocasião: “Imaginemos que alguém coloca determinado grupo de pessoas, bastante diversificado, numa mesma e uniforme situação de fome. Com o aumento da necessidade imperativa da fome, todas as diferenças individuais ficarão apagadas, e em seu lugar aparecerá a expressão uniforme da mesma necessidade não satisfeita.” Graças a Deus, Sigmund Freud não precisou conhecer os campos de concentração do lado de dentro. Seus objetos de estudo deitavam sobre divãs de pelúcia desenhados no estilo da cultura vitoriana, e não na imundície de Auschwitz. Lá, as “diferenças individuais” não se “apagaram”, mas, ao contrário, as pessoas ficaram mais diferentes; os indivíduos retiraram suas máscaras, tanto os porcos como os santos.
Footnotes
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Latim para “sob o aspecto da eternidade”. Termo usado por Baruch Spinoza, uma expressão que descreve o que é universal e eternamente verdadeiro, sem qualquer referência ou dependência das porções temporais da realidade. ↩