Autor: Jean-Paul Sartre


Há ainda uns vinte fregueses, celibatários, modestos engenheiros, empregados de escritórios. Almoçam rapidamente em pensões familiares que chamam de suas cantinas e, como têm necessidade de um pouco de luxo, vêm aqui após a refeição, tomam um café e jogam pôquer; fazem um pouco de barulho, um barulho inconsistente que não me incomoda. Também eles, para existir, precisam estar reunidos. Quanto a mim, vivo sozinho, inteiramento só. Nunca falo com ninguém; não recebo nada, não dou nada. […] Atualmente já não penso mais por ninguém; nem sequer me preocupo em procurar palavras. Isso flui em mim, mais depressa ou mais devagar, não fixo nada, deixo correr. Na maioria das vezes, por não se ligarem a palavras, meus pensamentos permanecem nebulosos. Desenham formas vagas e agradáveis, submergem: esqueço-os imediatamente. Esses jovens me maravilham: bebendo seu café, contam histórias inteligíveis e verossímeis. Se lhes perguntamos o que fizeram ontem, não se perturbam: informam-nos em duas palavras. No lugar deles, eu gaguejaria. É verdade que já faz muito tempo que ninguém se preocupa com o que faço. Quando se vive sozinho, já nem mesmo se sabe o que é narrar: a verossimilhança desaparece junto com os amigos. Também os acontecimentos deixamos correr, vemos surgir bruscamente pessoas que falam e que se vão, mergulhamos em histórias sem pé nem cabeça: seríamos testemunhas execráveis.

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Estou só, em meio a essas vozes alegres e sensatas. Todos esses sujeitos passam o tempo se explicando, reconhecendo com satisfação que têm as mesmas opiniões. Deus meu, que importância dão a pensar todos juntos as mesmas coisas!

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Alguma coisa começa para terminar: a aventura não se deixa prolongar; só tem sentido através de sua morte. Para essa morte, que será talvez também a minha, sou arrastado inexoravelmente. Cada instante só surge para trazer os que lhe seguem. Apego-me a cada instante com todo o meu coração: sei que é único; insubstituível - e que no entanto não faria um gesto para impedi-lo de se aniquilhar. Esse último minuto que passo - em Berlim, em Londres - nos braços de uma mulhar que conheci na antevéspera - minuto que amo apaixonadamente, mulher que estou perto de amar - vai terminar, eu sei. Dentro em pouco partirei para outro país. Não tornarei a encontrar essa mulher, nem essa noite, nunca mais. Desbroço-me sobre cada segundo, tento esgotá-lo; nada se passa que eu não capte, que não fixe para sempre em mim, nada, nem a ternura fugaz desses belos olhos, nem os ruídos da rua, nem a claridade titubeante do amanhecer: e no entanto o minuto se esgota e não o retenho, gosto que passe. E depois, subitamente, algo se quebra. A aventura terminou, o tempo retoma sua languidez quotidiana. Viro-me; atrás de mim, aquela forma melódica mergulha inteira no passado. Diminui, contrai-se ao declinar, agora o fim se confunde com o começo. Acompanhando com o olhar esse ponto dourado, penso que aceitaria - ainda que tivesse estado ameaçado de morte, ou tivese perdido um amigo, uma fortuna - reviver tudo, nas mesmas circunstâncias, de cabo a rabo. Mas uma aventura não recomeça, não se prolonga.

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Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se sucedem aos dias, sem rima nem razão: é uma soma monótona e interminável. De quando em quando se procede a um total parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou em Bouville. Também não há fim: nunca deixamos uma mulher, um amigo, uma cidade, de uma só vez. E também tudo se parece: Xangai, Moscou, Argel, ao fim de 15 dias é tudo igual. Por alguns momentos - raramente - avaliamos a situação, percebemos que nos envolvemos com uma mulher, que nos metemos numa confusão. Por um átimo. Depois disso o desfile recomeça, voltamos a fazer as contas das horas e dos dias. Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho, 1924, 1925, 1926. Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias verdadeiras, os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso. Parecemos começar do início: “Era uma bela noite de outono de 1922. Eu era escrevente de tabelião em Marommes.” E na verdade foi pelo fim que começamos. Ele está ali, invisível e presente, é ele que confere a essas poucas palavras a pompa e o valor de um começo.

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Lancei um olhar ansioso ao meu redor: só o presente. nada além do presente. Móveis leves e sólidos, incrustados em seu presente, uma mesa, uma cama, um armário de espelho - e eu próprio. Revelava-se a verdadeira natureza do presente: era o que existe e tudo o que não era presente não existia. O passado não existia. De modo algum. Nem nas coisas, nem mesmo em meu pensamento. Por certo fazia muito tempo que eu compreendera que o meu me escapara. Mas até então pensava que simplesmente se retirara do meu alcance. Para mim o passado era apenas uma aposentadoria: era uma outra maneira de existir, um estado de férias e de inação; cada acontecimento, quando seu papel findava, se arrumava sensatamente, por si próprio, numa caixa e se tornava acontecimento honorário: é tão difícil imaginar o nada! Agora eu sabia: as coisas são inteiramente o que parecem - e por trás delas… não existe nada.

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Ele não response. Pousou o garfo e me olha com uma intensidade prodigiosa. Vai me contar seus problemas: lembro-me agora que algo o aborrecia na biblioteca. Sou todo ouvidos: tudo o que quero é me compadecer com os problemas dos outros; isso representará uma mudança para mim. Não tenho problemas, tenho dinheiro, fruto de rendas, não tenho patrão, nem mulher, nem filhos, existo, é tudo. E esse tédio é tão vago, tão metafísico, que me sinto envergonhado.

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